Da redação jornalística para o campo de pesquisa científica
A jornalista Taís Seibt iniciou os estudos sobre fact-checking no Brasil e, atualmente, é uma das principais referências da área.
Por Paulo Pessoa
Formada em Jornalismo pela Unisinos, em Porto Alegre (RS), a jornalista Taís Seibt, que já atuou em veículos como o jornal Zero Hora, iniciou os estudos relacionados à área de fact-checking em 2015. Atualmente, é referência na área. Em entrevista à Revista F, a jornalista conta o porquê escolheu o jornalismo, os desafios e obstáculos que os(as) pesquisadores(as) enfrentam no Brasil e os próximos passos da sua pesquisa.
Revista F: Por que decidiu trabalhar com jornalismo?
Taís: Tenho uma referência muito marcante da minha infância que depois passei a relacionar com minha escolha de carreira. Meus pais são pessoas muito simples, que cresceram na colônia e não tiveram muito estudo formal. No contexto deles, dos irmãos, que são dez para cada lado, quase ninguém concluiu o ensino médio. Mas eu cresci vendo meus pais devorarem jornais e revistas. Eles sempre assinavam o jornal da cidade (Gramado - RS) e ficavam esperando chegar a edição, que era semanal. Depois, passaram a assinar um jornal diário de Porto Alegre, e era a mesma cena: todas as manhãs, o dia começava com eles do lado do fogão à lenha lendo o jornal de cabo a rabo - e eles ficavam muito bravos quando o jornal não chegava. O noticiário na televisão era um hábito também. Então, bem ou mal, cresci rodeada pelas notícias, e passei a imitar, como toda criança faz em relação ao exemplo dos pais, esse hábito deles. Mas não lia só jornal, também brincava de fazer jornal: dobrava as folhas de papel no meio, desenhava as capas, fazia as manchetes. Ou então, fazia uma bancada com uma mesa e começava a apresentar o telejornal. Nos primeiros anos da escola, logo comecei a me destacar nas aulas de redação. Ganhei vários concursos literários, fui “jornalista por um dia” do jornal Zero Hora (ZH) mais de uma vez. Quando visitei a redação do ZH, em Porto Alegre, que era uma das premiações do concurso, eu fiquei encantada. E tudo isso fez sentido quando, mais tarde, me tornei repórter e trabalhei naquela redação por vários anos. Acho que não sei responder exatamente por que decidi trabalhar como jornalista, parece que sempre fui jornalista.
Revista F: E quando se interessou pela pesquisa acadêmica?
Taís: Primeiro, foi mais uma questão de necessidade, preciso dizer. Quando terminei o ensino médio, meus pais deixaram muito claro que não podiam pagar uma faculdade. Eu já tinha expressado que queria fazer jornalismo. Fiz o ensino médio em colégio particular, com todo esforço dos meus pais. Minha única opção era trabalhar para pagar o curso. E assim foi. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. Morava em Gramado e me deslocava para São Leopoldo para fazer faculdade na Unisinos. São duas horas de viagem de ônibus, ou seja, quatro horas no total. Passava mais tempo no ônibus do que na aula e gastava quase mais dinheiro com transporte do que com estudo. Essa situação fazia com que eu cursasse poucas disciplinas a cada semestre e parecia impossível me formar. Tinha duas opções: desistir ou dar um jeito de morar mais perto. Batalhei estágios, fiz várias entrevistas e acabei conseguindo um trabalho em Porto Alegre que me permitiu mudar para São Leopoldo. Fui morar em um apartamento minúsculo que era dividido com mais seis gurias - dizíamos que era “a casa das sete mulheres” - e ficava na mesma rua da faculdade. Nisso surgiu uma oportunidade de entrar na iniciação científica como bolsista, o que também me ajudava a pagar o curso. Essa configuração fez com que, desde o começo, eu estivesse sempre com um pé na academia e outro no mercado de trabalho. Isso nunca mudou, até hoje vivo assim. Peguei gosto pela pesquisa, tanto que resolvi fazer mestrado logo depois de formada. Mas ao mesmo tempo, nunca deixei de ser repórter.
Revista F: Como surgiu o seu interesse de estudo sobre fact-checking e o fenômeno da desinformação?
Taís: Foi uma consequência de outros olhares de pesquisa. No mestrado, estudei o processo de convergência jornalística na redação do Zero Hora, no qual, ainda era repórter durante o mestrado. Estava investigando as mudanças de rotinas numa redação que estava começando um processo de integração entre o impresso e o digital - hoje é meio louco pensar nisso porque tudo já está altamente integrado ao digital, mas naquela época eram mundos paralelos. Conforme ia avançando nas referências, vendo outros estudos, a realidade em outros países, começou a me chamar atenção a vida fora das redações tradicionais. Até aquele momento, o jornalista tinha uma visão de carreira de certa forma condicionada a trabalhar em um veículo, e isso estava mudando. Quando fui para o doutorado, direcionei meu olhar para isso. Queria investigar as rotinas de reportagem fora das redações tradicionais, nos meios nativos digitais, que abriram e seguem abrindo frentes de trabalho diversas para os jornalistas. Comecei, em 2015, mapeando iniciativas nativas digitais no Brasil que poderiam ser objetos de estudo, mas sempre vendo também as referências de fora. E o fact-checking me chamou atenção. Tínhamos a Lupa, o Aos Fatos e o Truco na época, que vinham num movimento de ascensão dessa prática ao redor do mundo. Tinha pouca literatura específica ainda, a International Fact-checking Network (IFCN), que hoje é uma referência internacional inclusive para fazer acordos com as grandes plataformas, era embrionária na época. Veio 2016, Trump, Brexit, e os termos “fake news” e “pós-verdade” entraram mais fortes no debate público. Mas ainda assim, pouco se falava em fact-checking entre jornalistas e pesquisadores no Brasil. Sempre tinha que explicar o que era isso quando me perguntavam da pesquisa, mas fui indo. Enfim, chegamos a 2018, justamente o ano em que faria meu estudo de caso, no Truco, e era ano de eleição. Começou, na verdade, com o assassinato da Marielle Franco, depois veio a greve dos caminhoneiros, ainda antes de começar a campanha eleitoral. Parece que ali houve um despertar para essas questões. Isso abriu portas para minha pesquisa e me colocou em muitos espaços interessantes de diálogo, formação e também de atuação profissional. Só que me trouxe responsabilidades também, porque de certa forma vinham me procurar como “especialista” no assunto, um rótulo que me incomoda até hoje. Terminei o doutorado e não parei nunca de pesquisar, estudar, aprender. Estou ainda, como todos, analisando, interpretando, tentando buscar respostas que não temos para o fenômeno que está diante de nós e não para de se transformar. Tanta coisa já aconteceu desde 2018, e não para de acontecer. O próprio termo “desinformação” foi encontrando seu espaço nessas transformações, pela necessidade de se adaptar um vocabulário que já não traduzia o que estávamos tentando explicar. O fact-checking se transformou, assumiu outras funções de verificação, foi alçado a um papel de autoridade, pode-se dizer. Quando comecei os estudos era apenas mais uma prática secundária deste jornalismo nativo digital.
Revista F: Quando você decidiu criar o Afonte Jornalismo?
Taís: Defendi a tese de doutorado em 2019, o que significava também o fim da bolsa de estudos que tinha para fazer a pesquisa. De novo, foi um misto de necessidade com oportunidade. Tinha adquirido esse papel de “referência” no tema da desinformação e fact-checking. Era muito procurada para cursos, palestras e também para trabalhos jornalísticos nessa área, mas não queria personalizar a coisa. Por isso, resolvi criar uma “marca” que pudesse representar um projeto maior do que eu, com mais colaboradores. Chamei colegas que tinham trabalhado comigo no Filtro Fact-checking, que foi uma iniciativa experimental que conduzimos nas eleições de 2018 em parceria com a ONG Pensamento e a Agência Pública, que era responsável pelo Truco. Nós fazíamos checagens dos candidatos no Rio Grande do Sul para o Truco. Tomamos um mate e discutimos possibilidades de atuação, de forma colaborativa. Pela experiência do Filtro, já estava claro para mim que trabalhar em equipe não só era melhor, mas era necessário, para a qualidade do resultado. Também já estava claro para mim, naquele momento, que não era só sobre checagem de fatos, era também sobre dados e sobre letramento midiático. Tínhamos algumas demandas de produção de reportagens, fomos rabiscando alguns projetos. Nesse meio tempo, passei a dar aula na Unisinos, cada um foi se envolvendo em outros projetos, mas mantivemos parcerias esparsas. Pela minha atuação na universidade, o caminho da Afonte acabou indo cada vez mais na direção da formação e produção de conteúdo didático, embora ainda haja produção de reportagem. Organizamos alguns eventos de dados, como “Open Data Day”, “Cerveja com Dados” e o “Maratona de Dados”. Criamos um projeto de educação midiática, o “Postar ou Não”. Fizemos dezenas de cursos e palestras, e assim vamos.
Revista F: O Afonte Jornalismo alterou sua visão sobre o mundo?
Taís: São várias coisas. Por um lado, ser idealizadora de uma iniciativa independente, mesmo que pequena e sem recursos, exige diversificar nossas competências: desde gestão, planejamento, marketing. Não é mais só jornalismo. Então, a primeira mudança de visão de mundo que Afonte me trouxe é sobre propósito. O que fazemos e por que fazemos? Quando a gente se insere em uma organização, vamos fazendo o que fomos contratados para fazer, a nossa “obrigação”. A chave vira um pouco quando nos vemos tendo que investir tempo, que é um bem precioso, criatividade e até dinheiro em uma coisa nossa. Tem que fazer sentido. Todas as escolhas profissionais que fiz depois de criar Afonte, os projetos em que me envolvi e o quanto me dedico ao que faço, fazem parte dessa visão de mundo.
Revista F: Como a situação da pandemia impactou na produção da sua pesquisa?
Taís: A pandemia teve um duplo impacto no meu tema de estudo: primeiro, ajudou a colocar o tema em evidência, o que foi bom, porque tinha uma pesquisa recente sobre isso; segundo, despertou o interesse de todo mundo sobre o tema, então, pipocaram novas pesquisas aos montes, o que foi complicado, porque ficou muito difícil me manter atualizada sobre as discussões. Toda a escassez de bibliografia que havia antes foi suplantada por uma volumosa produção acadêmica sobre esse tema. Meu grande desafio hoje é acompanhar tudo isso e ficar atualizada, porque tem muita coisa interessante e relevante sendo produzida.
Revista F: Alguma dica para quem deseja seguir a carreira em pesquisa acadêmica na área da comunicação?
Taís: A carreira do pesquisador no Brasil é um pouco complicada. Quando você recebe uma bolsa de mestrado ou doutorado, precisa se dedicar exclusivamente à pesquisa, não pode ter vínculo empregatício. Uma bolsa de doutorado atualmente paga R$ 2.200, e não há férias, 13º, vale transporte ou qualquer outro benefício em cima disso. São 48 parcelas mensais de R$ 2.200, equivalente aos quatro anos de curso. Não se fala muito sobre isso, mas precisamos falar. É só fazer as contas: dá para arcar com os custos da pesquisa em si e mais com seus custos de vida, quando você paga aluguel ou é chefe de família? Esse valor de bolsa é um dos elementos de exclusão social no mundo acadêmico. Faz pesquisa quem tem condições de se manter nessa situação, seja com reservas financeiras ou ajuda familiar. Então, é bem difícil pensar numa dica. Porque se dedicar a um tema, estudar tudo o que pode, criar redes de contato com pesquisadores, participar de congressos acadêmicos e publicar artigos, nada disso garante sucesso na carreira de pesquisa. É fundamental fazer tudo isso, mas tem essa dificuldade de fundo. Precisamos batalhar pela educação, pela ciência, enquanto sociedade mesmo.
Revista F: Tem projetos futuros em relação a checagem de fatos?
Taís: Minha atuação está cada vez mais voltada à educação midiática, que inclui o fact-checking, estou menos na “linha de frente” da checagem. Mas considero que isso também é um projeto relacionado à checagem de fatos, porque formar leitores preparados para este mundo é fundamental.
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