“Representatividade importa”
O mato crescendo na beirada de uma rua sem calçada. Muros de tijolos e em frente a eles velhas arvorezinhas desgastadas pelo tempo. Um vira-lata aqui, outro mais adiante. Um senhor de idade capinando o quintal; uma jovem senhora tomando chimarrão.
E logo chego ao portãozinho de madeira que pertence à casa de número 558.
A primeira coisa a me saudar é o sorriso do mulherão de 1,80. Um andar forte e cheio de balanço que faz o Black Power (e que poder!) se mexer junto com os quadris.
A casa é simples, mas aconchegante. E naquele sofá da sala, sob a luz de um sol que tenta surgir pela janela aberta, a conversa começa; a história é contada.
Luciana Tavares dos Santos, 23 anos, modelo. De família humilde e cristã, cresceu em meio a uma doutrina tradicional, que não abria espaço para vaidades. Desde a infância, ela conta que já sentia essa “pressão” em ser como o padrão que a sociedade impõe às meninas, de acordo com o qual o cabelo precisa estar sempre liso e chapado pra ser bonito. “Você não pode ir para o caminho que a sociedade impõe, senão você se afunda, você vai pro buraco.”
Luciana conta que foi após a época de colégio que começou a se descobrir como mulher, procurar suas raízes, soltar os cabelos e deixar de se “esconder”. Também nesse mesmo período, através da irmã que participou de alguns concursos de beleza, começou seus primeiros trabalhos como modelo. Naquele tempo, ainda em processo de descoberta pessoal, a modelo lembra que procurava por referências de mulheres negras no mercado da moda, fazia pesquisas na internet e não encontrava quase nada.
Em 2008 desfilou pela primeira vez, e logo surgiu a oportunidade de fazer um book. A partir daí, por volta de 2010, a chance de participar de alguns concursos voltados para a beleza negra surgiu, o que possibilitou a transição da menina que prendia o cabelo para não chamar atenção à mulher empoderada e segura de si. Naquele tempo, cursando fotografia, era constantemente convidada a ser fotografada pelos colegas nos trabalhos da faculdade. Aos poucos a carreira foi ganhando espaço e no final do curso já trabalhava oficialmente como modelo.
Para ela, ser modelo nunca foi um sonho; tão pouco seria viável, considerando a condição financeira dos pais. Tendo duas irmãs com idades próximas à sua, seria impossível investir em todas e, segundo ela mesma, uma injustiça escolher apenas uma. A família foi essencial durante o começo da carreira, mas diz que teve a sorte de contar com pessoas que a ajudaram a entrar no mercado de trabalho sem nunca ter precisado pagar por isso.
Questionada sobre as dificuldades em iniciar uma carreira de modelo, Luciana diz que ainda existem muitas divergências quanto à necessidade de se ter modelos negras em campanhas, comerciais. Ela conta que raramente é escolhida entre as colegas brancas. “Eu nunca trabalhei tanto quanto uma mulher branca”, afirma. Critica também as agências, que não oferecem melhores oportunidades às modelos afros, a menos que seja uma exigência do contratante. E mesmo quando chamada, precisa ser o “tipo de negra aceitável”, com medidas menores e com o cabelo mais baixo. “A minha base eu preciso levar, porque os maquiadores não tem base pra pele negra.” Ela relata que até mesmo no São Paulo Fashion Week (maior evento de moda do Brasil), existe cota para modelos negras, do contrário, dificilmente seriam chamadas.
Mesmo com todas essas dificuldades, Luciana não se abateu e continuou seguindo em frente com seu trabalho. Enfim, em 2015 veio o resultado do esforço e dedicação: A garota pobre e negra venceu o Miss Pinhais. Ela conta que sentia a necessidade de representar todas as garotas que se escondem, que passam pela vida sendo “invisíveis”; a necessidade de mostrar às pessoas o quanto essa questão ainda precisa ser colocada em pauta.
Levantando essa bandeira, chegou ao Miss Paraná de cabeça erguida e cheia de orgulho. Mas os obstáculos continuaram a aparecer. Já no concurso, ela conta que passou por situações constrangedoras, comentários de organizadores e fotógrafos, e comparações com a outra concorrente negra, Raissa Santana (atual Miss Brasil). “Eles olhavam pro cabelo dela e falavam que aquilo sim era cabelo de Miss, que cabelo bonito era igual o dela.”
A essa altura, o olhar se perde um pouco do lado de fora da janela. Mas ela logo afirma que, hoje em dia, como mulher e negra que aprendeu a se aceitar e se amar, nada tem poder para abatê-la, nada pode colocá-la para baixo. Como uma pessoa que enfrentou preconceitos a vida toda, ela sabe a importância de continuar a luta, “Isso é necessário pra construção social, pra que a pessoa se veja em alguém. A representatividade importa”.
Depois de ter concorrido, decepcionada, conta que pôde perceber a necessidade de haver uma mudança no sistema do concurso. Para ela, uma classificação que leva a ganhadora ao Miss Brasil, e depois ao Miss Universo, necessita muito mais do que um cabelo aceitável, um padrão de beleza e medidas exatas. Precisa haver uma luta, uma história; toda uma trajetória. E não apenas mais uma mulher bonita em um concurso de beleza.
Ela conta que Raissa, até então apenas concorrente, chegou ao concurso sem se considerar negra, sem demonstrar interesse pela questão do preconceito racial. Sabendo do favoritismo da colega, chegou a conversar com Miss antes das eliminatórias e incentivá-la a pegar a causa para si, a levar a questão pra frente e representar todas as mulheres negras; assumir o cabelo e mostrar o orgulho em chegar até lá. “Tem gente que pensa que a gente gosta de ficar falando sobre racismo e batendo nessa tecla, mas a gente odeia. É uma dor falar sobre isso, mas é necessário”, enfatiza.
Hoje, ser Miss não está mais em seus planos. Luciana diz que continua firme na carreira de modelo, mas enquanto o sistema do concurso continuar com essas “falhas”, ela prefere se manter apenas como observadora e também auxiliar as futuras misses que, algumas vezes, a procuram para receber conselhos.
Luciana, além do trabalho de modelo, já tem projetos engatilhados para esse ano. Está buscando personalidades afro que são hoje referência em diversos trabalhos, cargos e ocupações. A ideia é que negros sejam retradados pelo olhar de uma mulher negra, e mostrem essa representatividade na sociedade. Com muita personalidade e um olhar diferenciado, a modelo já planeja a exposição, e quer ser a primeira a fazer esse trabalho em Curitiba.
Termina afirmando: “Pobre, negra e mulher; sofre o triplo. Mas gente sabe o poder que tem. E depois de tudo o que a gente passa, você sabe que ninguém tira a gente do lugar que conquistamos.” E mais uma vez surge o sorrisão cativante do mulherão que “mata um leão por dia”. A tarde logo se vai, a luz do sol desaparece da janela, mas a luz da negra linda e empoderada continua brilhando, assim como o sorriso dela.
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Texto e fotos: Jaqueline Correia Deina
Edição: Marcia Boroski e Sionelly Leite